O que será que ela fez para ser estuprada? Nasceu mulher!

Quase que simultaneamente à recente manifestação da laureada Jodie Foster sobre o drama vivenciado por mulheres em seus papeis no cinema, aludindo ao filme “Os Acusados”, pelo qual recebeu o Oscar, em que representa uma garota que é vítima de um estupro coletivo em um bar, numa cena das mais fortes da dramaturgia [1], eclode no país uma onda de casos relatados. Ficção e realidade estão confundidas naquilo que é uma permanência sobre os corpos femininos.

O grotesco da prática do estupro, especialmente o coletivo, o gozo não só do ato, mas também ao assinar a violência na exposição da vítima, de seu sexo e na construção bizarra de seus comentários demonstram que tem razão a assertiva de que o corpo e seus líquidos representam o último obstáculo da valência diferencial entre os sexos. [2] A naturalização das diferenças a partir dos corpos, especialmente, na superioridade do masculino e na inferioridade do feminino transpuseram os séculos. Esse corpo do feminino, seja na narrativa universal, seja na micro-história sempre esteve à mercê da investida, da violência e da objetificação.

As leis, os mandados e as práticas culturais cunhadas pelo falocentrismo autorizaram a retirada dos úteros como prova da bruxaria [3]; a mutilação genital soergue-se como prática cultural, assim como é o encurtamento de pés [4]; a colonização e a dominação permitiram que o côncavo do feminino fosse (e ainda seja) usado como instrumento de guerra e de conquista. Os estupros coletivos permeiam a história e seguem ocorrendo na contemporaneidade como forma de violação dos sexos, embora repugnante e abjeta, decorrência última que se dá pela condição da mulher.

Heróis nacionais estupraram índias e negras nas ruas e nos matos, mas também o fizeram em suas casas com as mulheres brancas. Autoridades viola(ra)m mulheres presas. Colegas de trabalho e Faculdade estupram suas amigas. Os estupros não são obra de desconhecidos, não raro. Nos bordéis, nas cadeias, nos estacionamentos, nas casas e nos leitos maritais esses corpos femininos foram e são colocados como o objeto do desejo e do ódio, especialmente do gozo do ódio, aquele que não se pode permitir. [5] Na pós-modernidade, o ato é filmado, twittado e comemorado pelo(s) autor(es) e não é só na deep ou darkweb. Transitam hashtags das mais variadas, tais como #somostodosestupradores. Renovam-se ditos como “não foi estupro coletivo foi sexo grupal” e por aí afora.

O número de estupros é assustador (ainda que haja a cifra oculta): em 2013, foram mais de 50.000 casos registrados, superando a já indizível cifra dos homicídios [6]. O Instituto de Segurança Pública já havia divulgado que, em 2010, mais de 53% das vítimas são adolescentes com menos de 14 anos de idade e, destas, 23% têm entre 0 e 9 anos de idade [7]. Alguns casos ficam no silêncio (e como se deseja que fique para que a prática transponha o tempo e o espaço [8]), outros eclodem como o de Castelo do Piauí, o da semana passada no Espírito Santo, nessa no Rio de Janeiro, amanhã aqui perto, forjando e perpetuando uma prática. E se começa, como sempre, a pinçar fatos envolvendo a vítima os quais pretendem justificar o injustificável.

A métrica dos cabelos e das saias, a cor da pele ou do batom, o comportamento ou os hábitos, seu sorriso ou sua sisudez são apenas elementos dos discursos de que se vale para estuprar e para revitimizar as próprias mulheres. Ao chegar em casa, numa delegacia ou audiência, narrando um estupro, paira no ar a pergunta: “O que será que ela fez?” Para a qual a resposta é a estrutura fundadora da misoginia. O fato é que a culpabilização da vítima é somente pelo fato de ser mulher; o mais são os detalhes do discurso que, na verdade, condenam sua própria condição.

A punição dos agressores é, sobretudo, tornar mulherzinha aquele sujeito que o sistema responsabiliza, um réu típico (e já sabemos quem são…), ao mesmo tempo em que se absolve todos os demais estupradores e, sobretudo, absolve-se uma sociedade misógina e machista, estruturada nas premissas do patriarcado que vitima meninas, jovens e velhas, loiras e morenas, negras, brancas e orientais, mulheres cis, bi, lésbica e trans. Quem, por um momento, ainda que não tenha nascido mulher, tenha se tornado uma [9], passa a frequentar o grupo de risco da estatística da violência sexual tosca e grotesca.

O estupro funciona como marca de dominação daquilo que se pode fazer com o corpo feminino daquele corpo que desvestido e desnudo é submetido à violência do ato, de sua narrativa e de sua comemoração. Menos como sempre, preocupa-se com a mulher; com a mulher cujo corpo segue sendo violado e objetificado, que segue sendo estuprado pelo ato e pela palavra.

Notas e Referências:

[1] Entrevista disponível em: http://prosalivre.com/jodie-foster-reclama-de-estupros-criados-por-roteiristas-com-o-unico-proposito-de-motivar-a-personagem-feminina/. Acesso em: 26 mai. 2016.
[2] HERETIÉR, Françoise. Masculino e feminino I: o pensamento da diferença. Lisboa: Instituto Piaget, 2015.
[3] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras. 22. ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2011.
[4] Ver posts no blog “Blogueiras Feministas”: blogueirasfeministas.com/2013/07/serie-acougue.
[5] SÁ, Priscilla Placha. Tem que ler Lacan. Mas ler e entender. Disponível em:  http://emporiododireito.com.br/tem-que-ler-lacan-ler-e-entender-do-contrario-nao-me-convide-para-uma-cerveja-por-priscilla-placha-sa/.
[6] Em 2013, o 8º Anuário de Segurança Pública divulgou a lista por Estado, tendo Roraima em 1º lugar.
[7] Ver dados em: http://www.direitosdacrianca.gov.br/em-pauta/2011/05/em-2010-53-5-das-vitimas-de-estupro-no-estado-do-rio-de-janeiro-foram-meninas-com-menos-de-14-anos.
[8] Como é possível perceber em “O Príncipe das Marés”, dirigido por Barbra Streissend, em 1991.[9] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
[9] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Drª Priscilla Placha Sá – Professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUCPR. Professora Adjunta de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná.